sexta-feira, 19 de março de 2010

Efemérides

A mosca que vos fala – não é a mesma mosca a qual costuma cair nas sopas (conforme uma certa música de Raul Seixas), ou fica de zunzunzum nas casas alheias – eu, na verdade, sou uma das que gosta de observar, de vagar por aí. Aprecio muito o mundo da observância e o de narrar fatos os quais presenciei. Não pensem que nasci mosca, pelo contrário, nasci gente: carne, ossos e tudo mais que o ser humano tem direito.
Se tivesse nascido mosca não viveria mais que alguns dias (não sei ao certo quantos, pois nunca me interessei pelo assunto, em pesquisá-lo, bem, até hoje). Um dia desses, um dia qualquer, acordei sentindo-me leve, tão leve que pensei estar a sonhar, como que a flutuar, hoje quando lembro, bem, não sei... Apenas mosqueava dum lado para o outro. Apressada...

Digo-lhes que vida de mosca não é fácil. Sem que esperemos somos expulsas dos lares, dos estabelecimentos comerciais, principalmente, dos que tenham comida. É uma vida triste, confesso, contudo, muito proveitosa para pensar na existência (e mais efêmera que a dos homens), nos problemas os quais assolam o mundo: desigualdade social, injustiça, fome, miséria, falta de amor: próprio e ao próximo.

Oh! Desculpem-me, esqueci-me de dizer-lhes meu nome, é Efemérides. Fui agraciada com esse nome pelas minhas companheiras, as moscas. Pois sou uma das filósofas das Muscidae, e uma de minhas teorias é sobre a efemeridade de nosso espécime, das dificuldades pelas quais passamos. E se as chamo companheiras – para que saibam o motivo – é porque criamos um sindicato, o SMDD: Sindicato das Moscas Domésticas Democráticas. Caso surja a questão do por quê da criação do sindicato, antecipo-me: lutamos por melhores condições de sobrevivência, vivemos pouco e, portanto, precisamos da compreensão das demais espécies de animais e de insetos do mundo para que possamos usufruir mais daquilo que a natureza nos propicia. Além de nos defendermos de acusações absurdas: acusam-nos de carregar em nossas frágeis patas micro-organismos responsáveis por transmitir doenças como a febre tifoide, a cólera e a disenteria e o maior dos ultrajes: contaminar alimentos. Mera especulação... Concordam conosco?
Apoiem nossa causa, desejamos um mundo melhor para todos, em que as classes menores também sejam favorecidas. Deixem de nos caluniar. Como podem falar que nós – as moscas – somos criaturas imundas as quais causam asco nas pessoas? Desculpem-me os porcos, mas todos temos um pouquinho de “porquice”. Vejam as crianças: quantas já vimos a comer a própria caquinha de nariz? Pessoas que roem as unhas, outras que comem sem lavar as mãos? E quanto àqueles que comem do lixo? As pessoas que permitem uma lambidinha de seus cachorros na cara? Temos um ótimo advogado pronto a processar qualquer um que se atreva a nos caluniar; certamente, ganharemos a causa. Na intimidade, tudo é permitido, ou quase...

A vantagem de ser mosca é a de poder bater as asinhas para todos os lados, principalmente, os que são proibidos para alguns: cinemas (refiro-me aos que são para os adultos), bares à noite, boates (aquelas com as luzinhas vermelhas na porta, sabem?), jantares da alta sociedade, CPI. Espiamos tudo e sabemos de muitas coisas que a mídia e a população desconhecem. E não precisamos dar satisfação a ninguém, nossos genitores põem seus ovinhos e vão embora, deixam-nos livres para decidir: a escolha dos caminhos a seguir, das moscas para o acasalamento. Hoje em dia, não devemos fidelidade a nenhum parceiro, só mesmo ao sindicato e aos nossos ideais.
Temos a fama de acertar em tudo, conhecem a expressão na mosca, não? No entanto, não ocorre com frequência, mesmo nossa visão sendo multifocal; eu, Efemérides, sou míope, pois creiam, é verdade. Não só pelo fato de eu ter ainda resquícios da minha humanidade (aliás, foi esse o motivo pelo qual consegui tornar-me a presidente do SMDD), mas também por ser, às vezes, um “defeito de fabricação” presente no meu dia-a-dia e no das minhas companheiras.
No mais temos uma vida simples, é verdade. Vida curta, mas intensa.

Acordei assustada, de repente. Quando, tateei-me, percebi que fora um sonho, não dos piores, mas um sonho, só.

2 comentários:

J.F.AGUIAR disse...

Ju,você é demais!!!escreveu maravilhosamente!!!
O Poeta tem este direito de Sonhar. Somos
a mosca na sopa da ,corrupção, mentira, mosca na sopa dos prepotentes e dos vaidosos de plantão
Falando sério você é muito gente é minha
amiga, quando eu for uma mosca em sua vida
diga, não tenha medo de dizer.

J Araújo disse...

Juliana, vc é uma escritora de primeira, sabe tecer a história, prender o leitor com sua capacidade de prender nossa atenção.

Valeu menina!

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