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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Em tempos de Eu...

"Só a vida ensina a viver. É preciso a gente ver primeiro tudo que a vida tem de mau e de sórdido para depois podermos descobrir o que ela tem de belo e de bom, de profundamente bom." Érico Veríssimo

– Mas que é sustentabilidade? Sustentável, que tantos falam ultimamente na televisão? – interrogava Angelina.
– Na dúvida, vejamos o Aurélio. – respondia-lhe Cassiano – Hum, sustentar: “Segurar para que não caia; suster, suportar. Afirmar categoricamente. Confirmar. Resistir a. Conservar, manter. Alimentar física e moralmente. Prover de víveres ou munições. Impedir a ruína ou queda de. Animar, alentar. Sofrer com resignação; aguentar. Defender com argumentos ou razões. Pelejar a favor de. Conservar a mesma posição; suster-se. Alimentar- -se.”. Entendeu?
– Não, meu bem, eu sei o que significa sustentar, mas o que não entendo é o significado disso na preservação do meio ambiente, do mundo. O que são esses tais métodos sustentáveis? – redarguia-lhe.
– Li uma definição interessante outro dia, olha só: “desenvolvimento sustentável é aquele que gera recursos hoje, garantindo as necessidades das gerações presentes, sem comprometer o direito que as gerações de amanhã têm de usufruir esses mesmos recursos.” Eu acredito que seja uma forma de promover um bem-estar à humanidade, ao mundo, sem prejudicar nenhuma geração, principalmente, as futuras. Porque todos temos sofrido com a irresponsabilidade do Homem. Às vezes, eu penso que a tecnologia também contribuiu pra esse caos do mundo. As empresas têm se preocupado com o meio ambiente. Mas veja só, por exemplo, tentam nos conscientizar que devemos preservar o meio ambiente, separar o lixo, reutilizar as coisas, como o papel, e a grande controvérsia: é o papel mais caro. Não acha estranho?
– Estranhíssimo... Cassiano, você trabalha numa empresa que utiliza esses recursos que falou, mas eles capacitam as pessoas para não só ter essa consciência, mas agir também?
– Sim e não... depende de cada pessoa, adianta ensinar uma pessoa que não tem boa vontade, que só pensa em si? Ultimamente, vivemos nos tempos do “eu”, o “cada um por si e Deus para todos”. E quanto a nós, que fazemos para sustentar o meio ambiente, ou pelo menos, o meio em que vivemos?
– Economizar água, luz, separar o lixo, varrer a calçada, ao invés de, esperdiçar água, juntar toda a roupa para lavar d’uma vez. Mas sempre deixamos que algo escape... Nós assistimos à televisão enquanto o computador fica ligado à toa. A solução, querido, é voltarmos à idade da pedra... – um riso saia boca afora. Talvez, fosse uma revolução a que propunha ao marido. Quem, hoje, se submeteria a aceitar algumas restrições no seu cotidiano? Quem se preocupa com a preservação da Mata Atlântica ou da Amazônia? São coisas a se pensar... O casal discutia a respeito de questões fora do comum a qualquer casal da atualidade. Não acham? Que pais ensinam aos filhos a não jogar um lixinho na rua, na praia? A não maltratar um pobre animalzinho indefeso? Ou os conceitos primordiais (éticos e morais) a qualquer pessoa?
– Boa consciência...
– Poucos têm, acho... Mesmo nós falamos disso, hoje é um dia incomum. Essa preocupação, deixamos sempre ao próximo, às ONG... por isso o mundo está desse jeito.
– Amor, pense comigo: temos sido bons pais? Sustentamos nossos filhos em todos os sentidos? Eu me sinto tão distante das crianças... você me questiona sobre essas coisas, mas não a vejo falar de nossos filhos, de suas preocupações com o futuro deles, ou estou enganado?
– Ah lá vem você com sua psicologia barata – ironizava.
– Angelina, assim me ofende, mas pense, não estou certo? Precisamos cuidar melhor de nossos filhos. Sustentar não significa só prover alimento, mas também condições para que eles possam encarar o futuro, estejam bem preparados ética e moralmente. Você mesma disse uma vez que criamos os filhos para o mundo. E como age para isso? Só compra maquiagem, pensa em passear, em gastar dinheiro. E nossos filhos onde ficam? Não assume, mas é, sim, egoísta.
– Seu cretino, sabia que de alguma forma iria chegar nesse assunto, me culpar por suas irresponsabilidades. Olha você, todo dia chega tarde, não perde uma cerveja com os amigos, o maldito futebol. E eu é que sou a culpada? A única? Analise-se bem, Cassiano. – os ânimos estão, como dizem, à flor da pele. Uma discussão necessária, creio...
– Tudo bem, não precisa me ofender... sabe que não gosto de baixaria, ainda mais pelo horário. Amo meus filhos e estou preocupado com eles, porque estão naquela fase: a aborrecência. E estão rodeados de perigos, sabe? Drogas, sexo... não quero nem pensar na minha filhinha com um homem.
– Cassiano, a Rebeca tem vinte anos e não é virgem desde os dezesseis. Então comece a pensar nisso, porque você está atrasado, e muito. O Cassinho também com vinte e três já não é mais um adolescente. Viu só quem é egoísta? Não sabe nada dos seus filhos... Pagar as contas é sua única obrigação? – o marido decerto refletiu. Na verdade, passou toda à noite a refletir na discussão que tivera com a esposa. Cassiano era do tipo de marido que acreditava que as obrigações do homem eram apenas prover um bem-estar à família, bem-estar financeiro. A família não era abastada, vivia, contudo, bem, viajava todo final de ano nas férias de família. E sempre, sempre havia uma discussãozinha à toa entre marido e mulher.
Naquela noite, Cassiano chorou, soluçava deitado no sofá da sala, encolhido, a pensar em sua vida e na de seus filhos. Rebeca não era mais virgem? Não podia crer que sua menininha não era mais... virgem, não era sua pequena donzela. Não sabia nem que pensar... Era um pai ausente para infelicidade própria. Os amigos depois do trabalho? não eram... era, na verdade, uma amante, nem sabia ao certo desde quando. Tragédia brasileira... como encarar o amanhã depois de Rebeca?

– Angie, bom dia, desculpe pelas coisas que disse ontem. – a esposa via na cara amassada do marido, nos olhos inchados, a noite mal dormida no sofá. – não dormi a noite toda a pensar nas coisas que me disse e naquelas que falei. E precisamos conversar. – rompeu no choro – eu, eu te amo tanto, tanto, mas sempre fui um calhorda com você e as crianças... reconheço meu erro, não reconheci em você, em tudo que construímos o meu futuro, a minha felicidade. Consegue me perdoar por tudo que fiz?
– Do que está falando? Não consigo entender ao que se refere!
– Me perdoa, apenas diga que me perdoa...
– Perdoar o que, criatura?
– Eu... eu te-tenho... uma amante. Me perdoa, por favor! Só tive coragem de confessar depois de tudo que conversamos ontem, depois da Rebeca... Saber que fui ausente em tudo e quero corrigir meu erro, consertar, refazer...
– Todo esse tempo você me fez de idiota? – as lágrimas caiam-lhe no rosto – por isso que não me procurava à noite? Estava sempre cansado! Até o futebol era uma desculpa pra se encontrar com, com... – nem conseguia dizer, era, era uma amante.
– Eu é que sou um idiota, um imbecil, por deixar minha família de lado por uma qualquer.
– Há quanto tempo você me trai?
– Pra que quer saber? Isso não leva a nada... não precisa saber disso, não precisa sofrer mais!
– Como não sofrer mais, Cassiano? Você joga uma bomba dentro de casa, da nossa família e não quer que... – o choro engasgava as palavras. – p... pergunte, que eu queira saber detalhes? Há quanto tempo você me trai? Quanto? Quem é a mulher?
– Se... sete anos... acho, me perdoa, amor!
– Amor? Sou alguma idiota? Acho que sim, por nunca ter percebido...
– Não fala assim... fale mais baixo, não quero que as crianças nos ouçam.
– Crianças? Que eles saibam que o pai deles é um imoral, um imbecil que não ama sua família. E ainda quis me culpar pelos problemas de casa?
– Eu amo vocês, não diga isso, sou louco por vocês... não conseguiria passar um só dia sem vocês.
– Pois terá que aprender, porque não quero mais ser sua esposa. – as palavras que lhe saiam doíam mais que a traição, afinal, Cassiano foi o único homem de sua vida, seu primeiro amor, pai de seus filhos, apesar da cólera momentânea o amava...
– Não diga isso, prefiro morrer... me perdoa! – ajoelhou ante a esposa a beijar-lhe os pés e molhá-los com suas lágrimas – me perdoa, me perdoa! Prometo que nunca mais vou olhar pra mulher nenhuma. Me perdoa.
– Perdoar? Eu é que tenho de me perdoar por ser tão burra, por escolher tão mal um marido. Bem fazem as mulheres que ficam solteiras... como me arrependo, não pelos meus filhos, mas você... Quem é a mulher?
– A Kátia...
– A Kátia, justamente, ela? Minha irmã? Ela sabe de todas as dificuldades de nosso casamento, das crises, de todo o tempo que abstivemos do sexo. Por quê ela, Cassiano? E ainda quer que o perdoe? Saia daqui... – rompia num choro de dor, permanecia inerte após o nome: Kátia! Sua irmã? Tinha de superar...

Quando os filhos souberam da traição do pai, odiaram-no, não queriam nem pensar... Choraram qual a mãe, um choro de desespero, de uma sofreguidão por também serem enganados pelo pai. No entanto, tinham de encarar a realidade: precisavam dali em diante trabalhar para ajudar nas despesas da casa, porque a mãe há tempos dedicava-se apenas ao lar, aos filhos. Precisavam apoiá-la, amá-la mais. Sempre fora boa esposa, boa mãe, jamais desconfiou do marido, justamente com a Kátia...
Intentava a irmã por vários dias a perdoá-la, perdoar o marido que a amava tanto. Afinal, sou sua única irmã e ele o pai de seus filhos.
– Ele não a quer mais? Pois fique com ele, vocês se merecem. Depois de tudo que tivemos, éramos tão unidas, jamais imaginei ouvir seu nome da boca dele. Não consigo perdoá-la. Por favor, não me procure e não ligue mais, esqueça que existo e diga o mesmo ao... sabe quem. – Bateu-lhe a porta.
Superar uma traição, ninguém supera, mas tenta conviver com a verdade. Angelina teve de reaprender a dormir, a tomar as decisões sozinha. Voltaria a lecionar, profissão a qual abandonara pelos filhos, pelo marido. Outra mulher rompeu a manhã, a Angelina Pagliare (não mais assinaria o nome de casada: Porto Pacheco).
Por algum tempo, Cassiano ainda rondava a circunvizinhança, em vão, ao passo que Angelina, era uma nova mulher, decidida a viver só, apenas ela e os filhos e os alunos nos quais encontrou a nova razão para a vida. Soube há alguns dias que os adúlteros viviam juntos. Que vivessem, porque não mais se importava com a opinião alheia, a nova Angelina não lhe permitia divagar nesses pensamentos ínfimos dos outros, dos outros eus, em suas inúteis opiniões.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Era ninguém

Então também percebi que, num país, uma coisa é o governo, outra coisa é o povo."
Ondjaki


Xuxa, na verdade, era uma passante acolhida pelas ruas da vila dos Tupinambás (o nome nos sugere a ideia de ser uma vila habitada por selvícolas, ou pelo menos, descendentes, contudo, foi-lhe atribuído por um de seus fundadores o qual apreciava a história de Hans Staden e a da tribo que o aprisionou), entregue à misericórdia alheia, à solidão e divagação de seus pensamentos. Os transeuntes eram também personagens passageiros em seus dias. Ninguém sabia ao certo de onde aquela mulher vinha, ou mesmo, qual era o seu verdadeiro nome.
Todos imaginávamos que era apenas uma figura a qual marchava duma esquina à outra a procura d’um canto em que pudesse pernoitar. Outros, ainda, ignoravam sua presença, era ninguém, uma indigente. Mal amada, mal vestida, mal cheirosa, uma louca que falava sozinha. Uns poucos lhe serviam, nos dias frios, um pão com alguma coisa e um copo de leite quente com achocolatado, davam-lhe as roupas velhas sem utilidade.

Dia desses, adentrou no coletivo, atravessou o corredor, em que muitos se afastavam mais que podiam para que ela não os esbarrasse. Quem ousaria sentar ao seu lado? Mulher mal cheirosa, louca... Uma infeliz. Desceu. Todos, enfim, podiam respirar – não um ar puro – ao menos respirar sem que o cheiro lhes causasse náuseas.

Os moradores do bairro eram amigáveis entre si. Eu mesma era uma dessas pessoas amigáveis, dava bom dia ao seu José, boa tarde ao seu João, um olá a dona Maria. No entanto, quando Xuxa se fazia presente, desviávamos o olhar, prendíamos a respiração, evitávamos pensar no assunto, afinal, cada um escolhe sua própria sorte, ou não...
Alguns acham cômodo o viver em família, o relacionar-se entre os iguais. Para Xuxa, o viver era ser ninguém: que pudesse incomodar, amar. Era provável a existência de família: esposo, filhos. Apenas seus pensamentos desconexos possuíam a resposta.

– Ela tem família. Você não sabia?
– Não. Como a senhora sabe?
– Outro dia, estava tão frio que fiquei com um dó da pobre... Então levei pra ela um pão com mortadela, umas bolachas e uma garrafa com leite e achocolatado e um cobertor velho. Aí comecei a conversar com ela, falei de Jesus, de seu amor pelas pessoas. E a partir daí, foi que ela me falou que tinha marido, filhos e que se chamava Maria de Lourdes e um dia saiu de casa...
– Simples assim?
– Pois é... Simples assim! Sabe minha filha – tratava-me sempre com carinho a dona Nair, quando conversávamos – fiquei triste por ela. Viver desse jeito, sem casa pra morar, sem família. Mas ela diz ser feliz assim... eu não entendo. Não consigo viver sem a minha família, sem os meus netos, minhas filhas e genros. Deus tenha misericórdia dela, coitada.
– Amém, amém! – era só que podia dizer. Alguém, ao menos, fazia algo àquela mulher. Quantos albergam pessoas as quais, um dia, foram importantíssimas: políticos, advogados, filósofos. E essas vivem a vagar pelas ruas, sem nome, nem pouso; vivem exiladas de si mesmas. Pior que morrer é sub-viver: sem passado, presente ou futuro. Ter dentro da carne putrefata um coração a bater.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Enfim...

A lembrança de Efigênia perturbara-me deveras... Por onde andas? Por quais cidades, ou ruas? Efigênia!
A mulher de meus estranhamentos, de minhas indagações, de minhas saudades e de meus insights... Trouxera, no espelho, tua imagem tão límpida, tão tênue. Vi-me tão jovem, tão vivo... Ocultara-te de mim. O eu de mim envelhecera; precisei tanto de ti; o teu eu fundiu-se em mim. Ressuscitou-me... teu reflexo no espelho, trouxe-me de novo a mim; quiçá, uma existência efêmera, contudo, estou vivo, graças ao teu maravilhoso ser.

Querida Efigênia, recebemos-te, calorosamente, felizes, peito aberto, prontos a amar-te. Bem sei, errei ao deixar-te partir, no entanto, estás de volta; pronta a amar-me outra vez. Mereço-te? Teu filho sofreu a tua ausência. A saudade tirou-lhe a alegria dos dias de verão. Menino triste, vivera os dias cinzas d’um outono infindo como eu, a tua espera. A esperar o ranger da porta no final das tardes.
Foste cruel, meu amor; sei, porém, que tua presença, hoje, és mais importante, trouxeste contigo a alegria dos dias de verão, dos dias pelos quais teu filho e eu esperávamos viver novamente ao teu lado. Fomos agraciados pela tua doce e feliz presença, almas vivificadas pelos teus lindos olhos azuis.
As vicissitudes dos dias cinzas findaram quimericamente. Realizara em nós o “felizes para sempre” dos contos de fada dos quais teu filho não esquecera, porquanto recitados por tua dulcíssima voz ao pé de sua cama.
Renato sonhava todas as noites contigo. Eu sonhava-me acordado com as noites de amor as quais tivemos, com os dias felizes. O tempo, amiude, venceu-me; a saudade doía qual ferida exposta; meu coração? Sibilava teu nome: Efigênia, Efigênia... descomedido, inconsequente... Efigênia, Efigênia... inquietava-me o sono, os dias, a vida. No entanto, estás de volta, pronta a amar-me outra vez.
Tua presença, teu amor irradiam meu ser. Tua ausência eclipsou-me a alma. A casa sombria outrossim espreitava a esquina a tua espera: dias, noites, semanas, meses e anos. Mau dia me levantei em que tu partiste a levar contigo minh’alma e a de teu filho. Precisávamos de ti, amor meu, todos os intermináveis dias; conflitos infindáveis sem ti para acalmar-nos o ânimo, afagar-nos a face.
Vês como tua chegada devolveu vida a nós, a casa? Sou grato a ti pelos dias os quais passei ausente de mim mesmo, aprendi a lição, árdua, confesso, mas aprendi. Fomos contigo e regressamos d’uma tempestade, enfim, a bonança. Perdoa-me pelos erros que cometi? Prometo ouvir-te, amar-te mais que amo.
Acalma-me com teu beijo, teu abraço, amor.
Vês como teu filho cresceu? Minha barba? ficou por fazer... os cabelos brancos representam, teatralmente, o drama de meus dias sem ti.
Teu perfume volveu as cores às flores do jardim, vês como alegres ornam nossa casa? ‘Té o sol obscureceu; a quem iria alumiar, se tu és a razão de sua existência? A luz da lua fugiu contigo. No teu regresso, o mundo, os astros voltaram ao seu labor. Os pássaros deixaram de cantar, bramiam, em coro, teu nome: EFIGÊNIA, EFIGÊNIA...
Todos somos gratos por teu regresso, extinguimos de nossas faces o quê sorumbático dos dias sem ti.

Teu para sempre,
Armando

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Museu da Bíblia sedia encontro de pessoas com deficiência visual







Pelo quarto ano consecutivo, o Museu da Bíblia sediou o Encontro de Deficientes Visuais e instituições que trabalham com este público. Promovido pela Sociedade Bíblica do Brasil, o evento foi realizado no dia 23 de outubro, reunindo mais de 300 visitantes para um encontro de confraternização. A iniciativa integra o programa A Bíblia para Pessoas com Deficiência Visual, mantido há mais de 15 anos pela SBB. A programação teve início com a palestra A Bíblia como Instrumento de Inclusão Social, proferida pelo secretário de Comunicação e Ação Social da SBB, Erní Seibert. Depois de dar as boas-vindas, Seibert destacou que uma das riquezas da humanidade são as diferenças. “A Bíblia é um livro de inclusão social. No texto bíblico aprendemos os princípios que tornam possível a inclusão: o amor, o perdão e a tolerância. É por isso que a SBB utiliza a Bíblia como livro que promove a inclusão. Inclusão significa conviver com a diferença, como é o exemplo de Cristo”, ressaltou o secretário. Os organizadores convidaram os participantes que ainda não se cadastraram a integrar o programa A Bíblia para Pessoas com Deficiência Visual. A SBB produz, desde 2002, a Bíblia Sagrada completa em braile, na língua portuguesa, cujos exemplares são distribuídos gratuitamente a mais de 2,5 mil pessoas cadastradas, juntamente com o material em áudio. Além disso, a entidade desenvolve outros projetos que focam as pessoas com deficiências. “No próximo ano, já devemos ter a primeira porção bíblica em LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais), contemplando, com isso, um grande contingente de pessoas com deficiência auditiva”, anunciou Seibert. Os participantes do encontro assistiram ao filme Coração do Pai, baseado na parábola do filho pródigo. A audiodescrição ficou a cargo da doutora em linguística, Lívia Motta. “Este é um recurso que amplia a informação para pessoas com deficiência em espetáculos e eventos variados. É uma forma de transformar o visual em verbal, contribuindo para a inclusão deste público”, observou Lívia, que atuou voluntariamente no evento e é a responsável pela preparação dos audiodescritores da primeira peça brasileira com audiodescrição no Brasil. Na cerimônia, foram revelados os vencedores do concurso literário A História de Mary Jones – O início do movimento das Sociedades Bíblicas. Organizado pela Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), o concurso de contos e poesias foi criado com o objetivo de destacar a vida da jovem que inspirou a criação das Sociedades Bíblicas, o começo deste movimento e o seu impacto na vida das pessoas, estimulando a criatividade de autores com deficiência visual ou não, e incentivando a leitura e a escrita em tinta e em braile. Os ganhadores foram representados por Diego de Lima Ribeiro, segundo colocado na categoria Contos – autores com até 16 anos de idade; e Juliana de Araújo, vencedora da categoria Contos – autores com idade superior a 17 anos – e terceira colocada na categoria Poesias, que receberam seus troféus e medalhas das mãos de representantes da SBB. Os demais ganhadores, moradores de outras cidades e estados, receberão a premiação em suas casas. Um momento de grande animação foi a premiação das ONGs com mais representantes. O primeiro lugar ficou para a entidade Amigos pra Valer, seguida da Fundação Dorina Nowill e da Associação de Deficientes Visuais Evangélicos do Brasil (ADEVEB). Para finalizar, os participantes fizeram uma visita à área de exposição do Museu da Bíblia.

Confira abaixo a relação completa dos vencedores do Concurso literário A História de Mary Jones – O início do movimento das Sociedades Bíblicas:

Contos – Autores com até 16 anos,11 meses e 29 dias
1º. Vinícius de Oliveira – Caxias do Sul (RS)
2º. Diego de Lima Ribeiro – Franca (SP)
3º. Jaqueline Cândido Pantis – Araruna (PB)

Contos – Autores com idade superior a 17 anos
1º. Ana Cláudia Lucena de Azevedo – Parnamirim (RN)
2º. Juliana de Araújo – Osasco (SP)
3º. Elenara Predebon Fernandes da Silva – Porto Alegre (RS)

Poesias – Autores com até 16 anos, 11 meses e 29 dias
1º. Rafael Mesquita Azevedo de Souza – Uberlândia (MG)
2º. Paula Hellmann Claudinno – Dourados (MS)
3º. Leonardo Samuel Idalencio – Caxias do Sul (RS)

Poesias – Autores com idade superior a 17 anos
1º. Rosana Aparecida Marques Roma Takachi – Esteio (RS)
2º. Juvenal Alves Correia – Senador Canedo (GO)
3º. Juliana de Araújo – Osasco (SP)

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Milagre em São Domingues

“...‘Ao Deus Desconhecido’. Pois esse Deus que vocês adoram sem conhecer é justamente aquele que eu estou anunciando a vocês.” Atos 17:23b

Das primeiras letras as quais aprendera Constância não nutria por elas amor, porquanto, pertencia a uma família de alto padrão social. Tinha uma vida vazia ainda que obtivesse tudo que desejava, seus pais realizavam todos os seus caprichos, todos os seus desejos... Era uma menina triste. Porém, sua vidinha, ao que parecia, rumava a uma abundância diferente: na escola em que estudava sua professora Clarice, a obedecer ao projeto social do planejamento escolar, organizou um encontro entre os alunos da escola com um estrato social distinto ao qual estavam habituados.
Eis que começa nossa história...
Viajaram alguns quilômetros até chegarem ao destino: um vilarejo humilde em que crianças como elas trabalhavam na lida. A professora conhecia com propriedade aquela rotina, pois trabalhara como qualquer criança daquele lugar, ou melhor, conhecia a todos que viviam naquele cenário. Nascera no vilarejo, e vivera sua infância lidando com a terra, alimentara os animais e ajudara sua mãe nos afazeres domésticos. Tivera uma vida simples.
Houvera um trabalho missionário dentro de um sítio não muito distante dali, todos conheciam o seu Zé, dono do sítio, em que Clarice todas as quartas-feiras visitava para ouvir os causos que narrava com toda sua simplicidade e encanto, foi atraída pelas suas histórias... Seu Zé era um homem simples, caboclo, semi-analfabeto, migrou do Ceará na década de sessenta, conquistara um pedaço de terra com muito suor de seu rosto. Gostava de contar suas histórias para as crianças da circunvizinhança. Um dia conheceu um jovem missionário, Artur, o qual era professor, e o convidou para uma prosa enquanto chupava mexericas colhidas do pé:
– Oli seu moço, sô um homi simples, contadô di história, mai num sei lê não, visse? Gosto di insina um poco da vida pras criança, conto meus causo e elas fica toda filiz...
– Seu José...
– Podi mim chama de Zé, seu Zé, tá bom?
– Sim, senhor! Pois então seu Zé, meu trabalho é ensinar crianças, alfabetizá-las através da Bíblia. Desde menino tive esse sonho, porque nasci em uma família rica que pôde me dar tudo que sempre quis: as melhores escolas, roupas, brinquedos... E eu de dentro do carro, enquanto ia para a escola, via crianças pedindo um trocado, vendendo alguma coisa, sendo exploradas por homens e mulheres... Senti que tinha que fazer alguma coisa, porque frequentava a igreja e via as famílias mais pobres se sentarem nos últimos bancos em trajes simples e sedentos das Palavras de Vida Eterna.... então quando iniciei a faculdade tive de romper com minha família, pois não aceitaram que eu fosse um missionário e vivesse humildemente. Muito tempo se passou desde a última vez que vi meus pais. Vivo pela misericórdia de Deus! – enquanto narrava um trecho de sua vida, as lágrimas molhavam o chão e a alma do seu Zé.
– U moço mim deixô sem palavra... qui ocê acha de insina as criança daqui? Eu imprestu meu sítio procê insina.
– Deus é bom, seu Zé!
– I num é?!
– Eu estava orando para encontrar um lugar em que pudesse ensinar e encontrei o senhor. Obrigada Senhor por responder as minhas preces!
– Ô seu Artu... num fique assim não, num chore, visse minino! Eu sô uma pessoa humilde, num sei iscrevê, mais posso oferecê minha casinha procê insina as criançada. O que ocê pricisa é só mi pidi, tá bom?
– Obrigada seu Zé, Deus o abençoe!
Assim começava a escolinha, na qual Clarice que acabara de completar quinze anos conheceu a Jesus e auxiliou ao seu mestre a aproximar-se de mais crianças. Com seu trabalho todos os pais daquelas crianças foram alcançados, apenas os pais de Clarice recusaram a ajudar e opuseram-se a ideia de Clarice participar do trabalho de alfabetização, pois achavam perda de tempo estudar. As bíblias, folhetos tudo que utilizou para salvar a vida daquelas crianças foram doadas pela Sociedade Bíblica que fornece literatura e bíblia para todo o mundo, além de suprir as necessidades de pessoas como Artur.
Clarice quando criança ensejava estudar mais, mais que os quatro meses os quais uma professora itinerante poderia ofertar. E Deus, em sua infinita graça, escolheu Artur para revelar-se a menina, para mostrar que a vida era mais que trabalhar para comer e seu sonho de estudar era possível. Ela via a alegria daqueles seus amiguinhos brilhar em seus olhos; pôde presenciar a transformação daquelas vidas pela Palavra Viva. E desejou naquele instante ser como Artur.
Era muito grata ao seu Zé, o contador de história, foi ele quem germinou em sua alma o desejo de aprender mais, de conhecer mais que aquelas histórias... quando leu pela primeira vez a história do menino Jesus, quis saber quem era o Messias e Artur explicava com muita paciência e amor:
– Clarice, Ele é o Salvador do mundo, morreu por nossos pecados em uma cruz!
– Entendi, mas do que somos salvos? O que é pecado?
– Uma pergunta complementa a outra... – respondeu Artur enquanto sentava-se em um dos bancos improvisados com blocos para a escolinha – somos todos pecadores, porque vivemos em um mundo que Satanás opera. Bem, deixe-me ser mais claro. Veja Clarice: quando um amiguinho seu pega uma mexerica do seu Zé sem pedir, o que ele faz é certo? Ou então quando um outro usa o estilingue para matar um passarinho pelo prazer de vê-lo cair no chão, é certo?
– Bem... o seu Zé naquelas histórias dele vive dizendo que a gente não deve machucar os bichinhos, que isso é coisa de gente malvada! É verdade isso não é certo! Mas as mixiricas... ele diz que a gente pode pegar quando quiser.
– Então entendeu o que eu quis dizer... o pecado é exatamente isso: fazer uma coisa que alguém desaprova! E Jesus com a sua vida nos ensina a amar as pessoas, a não querer o que é delas, a amar tudo que Deus criou e respeitar.
– Nossa como é bom esse Jesus... ele ensina coisas muito boas!
– E não é só isso... só podemos agir como ele orienta se estivermos dominados pelo seu Espírito, porque é Ele quem nos ensina todas as coisas boas que Deus quer que façamos.
– Espírito?
– É Espírito Santo, ele habita dentro de nós quando somos batizados, é a garantia da vida eterna.
– Ah então eu não tenho...
– Como assim? Quantos anos você tem?
– Oras quinze...
– E seus pais não a batizaram?
– Não...
– E você deseja ser batizada e conhecer Jesus em seu íntimo? – Artur estava muito feliz por conhecer alguém tão ávido como Clarice. Orava por ela desde a primeira vez que a vira.
– Sabe Artur... um dia, eu sonhei que estava dentro do rio e de repente vi alguém se aproximando, essa pessoa brilhava, brilhava tanto que eu não conseguia olhar em seus olhos e aí chegou bem pertinho de mim e me perguntou se eu queria ser batizada e ser uma mensageira. No sonho, eu aceitava e o homem derramava água sobre a minha cabeça e dizia que me batizava em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Tive esse sonho tantas vezes e todas as vezes acordava chorando, mas era de alegria, como se eu fosse outra pessoa, sabe?
– Clarice, você deseja experimentar de novo essa sensação? – Artur estava tão emocionado com a narrativa de Clarice, que suas palavras saíram descompassadas e envoltas de lágrimas de regozijo.
– Sim, sim, sim... – mil vezes sim, jubilava Clarice, numa explosão de uma tão felicidade que Artur jamais sonhara em presenciar.
Em seguida, os dois entraram no rio que ficava à margem do sítio do seu Zé e Artur a batizou em nome da Trindade, esse era seu primeiro batismo desde que chegara ao vilarejo São Domingues. O rosto de Clarice resplandecia a face do Senhor em toda a Sua glória! Depois do batismo sentaram-se na grama para secarem as roupas:
– Como está se sentindo?
– Molhada e muito feliz! Sinto que sou outra pessoa, a mesma coisa que senti depois de acordar daquele sonho, uma alegria e uma vontade de gritar.
– Pois então grite!
E Clarice gritou:
– OBRIGADA SENHOR, OBRIGADA SENHOR!!!
Artur aproveitou a oportunidade para presenteá-la com uma bíblia. Ela abraçava, chorava e beijava tanto aquele precioso livro que fez Artur lembrar-se de uma linda história:
– Você me fez lembrar de uma menina que recebeu em seus braços uma bíblia e como você a beijou, abraçou... essa história tem duzentos anos.
– Oras e como conhece? Qual o nome dela?
– Porque foi a partir dela que muitas pessoas como você ganharam a sua primeira bíblia. Mary Jones, uma menina que vivia no País de Gales um país bem distante daqui perto da Inglaterra. Quando tinha dez anos desejou muito ter uma bíblia, mas naquele tempo era muito difícil conseguir uma, principalmente, porque ela era muito pobre...
– Como eu? – indagava Clarice com os olhos atentos a cada movimento de Artur.
– Talvez mais pobre... era a única filha de uma família de cristãos, nenhum deles sabia ler, foi matriculada numa escola numa vila próxima a que morava e dedicou aos estudos como você, e tornou-se uma das primeiras alunas da classe, mas seu sonho de ter uma bíblia ainda era distante, trabalhava em tudo que surgia para conseguir dinheiro e economizava muito. Ao final de um ano, a quantia ainda era insuficiente. A espera da menina durou longos seis anos, até que foi à igreja que congregava e pediu uma bíblia ao pastor, mas ele disse que era impossível encontrar em sua vila, ou mesmo nas vilas da vizinhança um exemplar da bíblia, contudo lembrou que na cidade de Bala havia um pastor que costumava ter exemplares da bíblia para vender. Mas a cidade ficava a quarenta quilômetros de sua vila.
– E o que aconteceu?
– Mary não poderia desistir de seu sonho, então pediu para seus pais para ir até lá, no início, eles não concordaram, mas oraram e deixaram que a menina fosse. Para economizar os sapatos, a pequena galesa, fez o percurso a pé para não desgastar seu único par de sapatos. Andou o dia todo, chegou um momento que não aguentava mais e parou...
– Ai não acredito!
– Acalme-se Clarice... Ela não iria desistir depois de tanto tempo, então, levantou-se caminhou um pouco mais e avistou a cidade de Bala. Fico imaginando o que ela sentiu naquele momento...
– É verdade, deve ter ficado muito alegre...
– Quando chegou na casa do pastor... Thomas Charles, Mary foi surpreendida com a notícia que não havia mais nenhum exemplar em sua língua. A menina chorou tanto e narrou a sua história ao pastor, ele ficou muito comovido com a sua história... história que iria mudar o mundo... e aí lembrou que ainda havia dois exemplares encomendados e um deles era em sua língua e deu a menina. Ela só abriu sua bíblia quando chegou em casa para ler com os pais. Depois disso, o pastor Thomas contou a outros a história de Mary e todos se inspiraram e ali decidiram que isso não poderia mais acontecer, que todos deveriam ter acesso fácil à bíblia. E depois de muito orarem esses homens fundaram a Sociedade Bíblica Britânica em dezembro de 1802 com o intuito de traduzir, imprimir e distribuir a bíblia. E assim depois de muitos anos, de muitas mortes, a bíblia alcançou a todos e hoje é o livro mais lido em todo o mundo. E todos que a leem são transformados pelo poder que suas palavras têm.
– Que história linda Artur! Mas como assim mortes?
– Muitos homens tiveram esse mesmo sonho que todos tivessem acesso à palavra de Deus revelada, mas foram mortos, bíblias foram queimadas até que tivéssemos total acesso a ela; há muitos ainda em países distantes do nosso que as pessoas são proibidas de ter, ou mesmo, ler uma bíblia.
– Nossa... Eu quero fazer alguma coisa para levar a bíblia para outras pessoas como eu. O que eu posso fazer? Meu sonho é ser professora como você e fazer a mesma coisa que fez por mim e por meus amigos.

Depois dessa longa conversa, Clarice cresceu, estudou e formou-se professora e casou-se com Artur; juntos trabalharam com crianças como ela fora um dia: pobres e sedentas pela verdadeira sabedoria. Tempos depois, decidiram trabalhar na escola dos pais de Artur em que implantaram um projeto para que as crianças da alta sociedade conhecessem estratos sociais carentes e fossem transformadas pela experiência de aprender e servir a outras crianças.
Constância foi uma dessas meninas que transformadas, incitaram aos pais para investir em escolas rurais para que pessoas como Clarice tivessem a mesma oportunidade de conhecer as letras e a Jesus.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Impressões

Dedicado à memória da querida amiga e irmã Léa Denise a qual dorme no Senhor
Num desses inícios de primavera ao cair da tarde, tardezinha fria, antes de me recolher, detive-me ao diálogo entre duas senhoras: uma jovem – entre vinte e cinco e trinta anos – e a outra, a anfitriã – de cinquenta anos. Da anfitriã eu era a hóspede não convidada; não desejada nos cantos da casa, sempre a fiar e a ouvi-la, como nessa tarde:

– Eu os via... via apenas seus pés: pequenos, descalços, imundos... o corpo envolto naqueles cobertores de mendigos, doados pela prefeitura, no frio das noites paulistas. – referia-se aos pequenos marginalizados da beira do Tietê. – eu os via todos os dias no ir e vir do meu trajeto cotidiano: ano após ano, talvez, não os mesmos pés e, infelizmente, acabamos por nos acostumar àquela realidade. No início assistir àquela cena trazia um mal- -estar, sentia o desejo de fazer algo por eles, mudar de alguma forma a realidade, mas os dez anos em que trabalhei no teatro de São Paulo acostumaram-me àquela cena: triste, desumana...
– Sei... assistir a tragédia que perpassa nossa realidade, e somos completamente alheios. Apesar de doer dentro de nós, que há a se fazer?
– Mas me doía muito pensar que não existiria um futuro para eles. Uma vez pobre...
– Morrerá a mingua, mas ainda assim terá esperança... como nós, de poder fazer algo por quem quer que seja. – a vida é sonho como narrou Calderón de la Barca e a busca incessante da realização deste. O homem sonha demais e pouco realiza, principalmente, quando deseja fazer algo pelo outro. Além de não conseguirem viver sozinhos como nós, a aranhas.
– Sim, eles sonham em deixar de ser transparentes, invisíveis para a sociedade, para o resto do mundo. De não morarem mais na favela composta de casas desiguais, sem métrica, nem higiene... de dar um amanhã aos seus filhos.
Eu a olhava, observava e via aquela mulher, Léa, cheia de vida, de esperança para a sua família; e doente, descobrira há dois anos um câncer e a quimioterapia a fazia padecer com esperança de ver ainda seus futuros netos. E eu sabia, ou pelo menos, sentia que ela precisaria de apenas um toque na capa de Jesus para sentir-se viva outra vez, completa. Minhas impressões.
Durante o tempo em que conversavam: Léa – a anfitriã – e Cecília, eu as assistia. Presenciei as lágrimas, os sorrisos, as poesias tão íntimas que uma lia para a outra para que pudessem experimentar uma da outra a opinião, o olhar de consentimento, de aprovação; da beleza de contemplar o simples, a solidão...

Talvez, essa seja uma narração de uma conversa descomprometida, desinteressada, contudo, a amizade, o sentimento o qual as motivava, a estar naquela sala, era sincero, puro e real. A mais jovem tinha a outra como uma espécie de ídolo, porque esta era cantora, professora de música, escrevia poesias: uma artista completa. E Cecília não tinha em sua família o conchego o qual essa casa e essa amizade propiciavam. O ensejo da visita era a doença e um caderninho de poemas cujo desejo era o de oferecer a Léa, e o estar perto.

Registrei num poema (por mais insólito que seja uma aranha escrever) esse encontro:


Impressões

O estar perto imprime o diálogo sem compromisso
impressões se fundem, se calam
sentimentos se traduzem no olhar,
no sorriso, nas lágrimas
personificação dos silêncios.

Noite alta, céu plúmbeo, lua obscurecida
ideias se fundem, se calam
o estar perto, bem perto
traduz a realidade: o desejo
de apenas ali estar

ao lado de quem se ama
e de quem quer estar perto,
bem perto. A dividir: sonhos,
ideais, medos, desejo de ser,
de fazer, de dividir, de compartilhar.

Talvez, imprima bem a realidade de uma boa e verdadeira amizade. Porque a jovem Cecília amava aquela mulher, aquela amiga de pouca data e muita conversa. E seu desejo era o de ver a saúde da outra restabelecida, como ela disse ao final do encontro:

– O meu desejo, e eu sinto isso no fundo do meu coração, é vê-la curada, vencedora, porque a amo; e sei que ainda há de lembrar-se desses momentos de tribulação com alegria por tê-los vencido, há de ver seus netos a correr pela casa, ainda os ninará com sua doce e linda voz, eu creio!
– Deus sempre providencia alguém para ficar comigo, nunca fico sozinha, obrigada. – E o encontro encerrou com um abraço molhado das lágrimas, sincero, forte e feliz, pois o estar perto, bem perto de quem se ama basta.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Visitação

"Não é trabalho do poeta contar as coisas como aconteceram, mas como desejaríamos que tivessem acontecido." Garcia Bacca


Meneando de quando em quando, Olavo passeava pelos cômodos de sua casa, cabisbaixo, embebido em seus pensamentos. Tivera uma discussão deveras acalorada com sua namorada, Irine.
Namoravam acerca de cinco anos; moravam juntos há quase dois. Durante o relacionamento, separaram-se por três vezes. Tinham quase a mesma idade intelectual: Olavo, trinta e Irine, vinte e cinco anos. A decisão de morarem juntos aconteceu, porque Olavo, por conta do emprego, precisava transferir-se para São Paulo. O amor bradou mais que as diferenças.
Viviam bem, no entanto, como qualquer rotina de casal, havia sempre algo a estremecê-los: sogras, trabalho, interesses pessoais. Como qualquer casal... O motivo pelo qual discutiam, entretanto, não era por banalidades do cotidiano. Irine exigia que Olavo fosse mais presente:
– Desde que viemos pra São Paulo, você age diferente comigo. Está sempre ocupado quando precisamos discutir nossa relação. Chega sempre, sempre tarde. Não me procura mais. Eu... eu – desatou a chorar – me sinto sozinha, conheço poucas pessoas aqui, não tenho ninguém pra conversar, pra falar sobre meus projetos. Inda não consegui me firmar num emprego. Comecei a escrever meu livro, mas essa solidão me desconcentra a todo instante. E onde está você? Quem é você, Olavo?
– Ni, eu a amo tanto... Sei que é difícil pra você, pra nós essa situação, mas entenda, o trabalho exige demais e eu... eu também me sinto assim, sozinho. Longe de casa, não é fácil a adaptação. Me desculpa, não posso prometer, mas tentarei passar mais tempo com você. Olavo também se ressentia por não participar tanto como queria de seu relacionamento, de não amá-la mais...
– Não quero ficar mais a discutir com você. O motivo de nossas conversas são sempre cobranças e mais de minha parte. Estou cansada de ser a chata, de ser tão incisiva conosco. Sempre falo o que penso e isso acaba comigo, quero ser diferente. Todas as vezes que nos separamos, era eu que pedia. Não quero mais, cansei dessa vida.
– Está bem! – assentia com a cabeça, ao passo que, Irine fixava os olhos no chão, inerte. Aproximou-se dela, abraçou-a e deu-lhe um beijo na face. – Eu te amo mais que tudo, mais que minha vida. Casa comigo?
– Sim – era a resposta esperada por Olavo, mas não naquele tom melancólico, depressivo.
– Casa comigo? – repetia a pergunta, enquanto genuflectia em sua frente e tomava-lhe a mão para colocar no anular o solitário.
– Sim, sim, eu me caso com você. Serei oficialmente a senhora Irine Pacheco Cajeron Almeida. Que acha? – Irine, estava feliz, mas pensava que o pedido, o casamento, não mudariam as diferenças e as dificuldades pelas quais passavam nos últimos dois anos. No seu íntimo, ainda ressentia-se pelas discussões, pelas ausências, mas estava feliz...
– Adorei! Você será oficialmente minha e de mais ninguém. Precisamos comemorar, que acha de um jantar?
– Certo! Me apronto em dois tempos.
Compartilharam duma noite tranquila, esqueceram, por algumas horas, das discussões. Irine, por toda à noite, contemplava o solitário e o par de olhos verdes de Olavo, os quais se destacavam entre a face branca e os cabelos negros.

Ressuscitara, uma antiga história do passado de Olavo ressurgia das cinzas como a bela fênix. Uma ruiva, de uma noite qualquer, assombrava os sonhos do cavalheiro Olavo. Tentou resistir-lhe o mais que pôde. Bastou uma noite, uma única noite para que Gisele engravidasse. Má sorte de principiante, Olavo jamais desejou outra mulher que não fosse Irine. Ambos foram, um para o outro, a descoberta do amor, dos prazeres, do sexo. Num dos momentos em que estavam separados, aconselhado pelos amigos, saiu à noite para “caçar mulher”. Mesmo que não fosse o que desejava, no íntimo, não queria ser motivo de gozação dos amigos, apesar de não ser mais um adolescente... E numa dessas noites em que saiu com os amigos, conheceu Gisele, amiga do amigo do amigo de Olavo. Conversaram sobre diversos assuntos, até que ela o convidou para que fossem a um lugar mais íntimo em que pudessem conversar mais à vontade. Ele, mesmo contrariado, consentiu. O fruto daquela noite chamava--se Otaviano (nome do avô de Gisele).

– Otaviano veio pra ficar, Olavo! Ele passou tempo demais longe do pai, mesmo que não queira, é seu filho e é essencial uma presença masculina em sua educação. Fique com ele por uns tempos, quando cansar leve-o de volta praquele fim de mundo que é Cabreuva. Para Gisele, a criança era um fardo, fruto de uma noite de prazer, com um belo par de olhos verdes, muito da infeliz. Despediu-se, apressadamente, do filho, enquanto o menino chorava desconsolado.
– Mamãe, num quero fica, por favor me leva com você. – rompia a chorar sofregamente. – O pai, sem muito saber que fazer, tomou-lhe nos braços. Era uma criança frágil, magricela, esculpida e talhada à figura do pai, exceto pela tonalidade dos cabelos alourados. Abraçou-o e prometeu devolvê-lo a mãe assim que ele quisesse.
O último encontro fora há dois anos, antes de se mudar. Irine tolerava o menino. Que fazer? Olavo era mesmo o pai, tinha de assumi-lo, amá-lo. A convivência seria difícil, e a tarefa de zelar pelo menino, educá-lo cabia agora a ela, pois o pai trabalhava... Otaviano era um menino introspectivo, introvertido, triste. Tinha apenas quatro anos e era obrigado a viver com o pai, o qual mal conhecia. A criança sempre tem de sofrer quando há a irresponsabilidade de atos impensados pelos adultos, os quais resultam numa gravidez indesejada, num filho não querido, não amado. Nesse caso, o remédio, o único remédio era tentar conhecê-lo, amá-lo.
Olavo levou o filho até o quarto, pois já passava das dez duma noite fria de outono paulista. A criança estava gelada, triste, desconsolada.
– Tavinho, o papai nem sabe o que dizer... Quero que se sinta como se estivesse em sua casa. Afinal, sou seu pai e de hoje em diante viveremos juntos, desejo muito vê-lo feliz. Não chore mais, filho. – enxugava-lhe as lágrimas. – Quando quiser poderá rever sua mãe, prometo. – Tirava-lhe a roupa, porque estava sujo, gelado e carecia d’um banho para lavar o corpo e alma daquela tristeza. Mal cabia nas roupas esfarrapadas, o aspecto era de uma criança abandonada.
Naquela noite, pai e filho choraram cada um num quarto. Aquele por ver a situação na qual o filho chegara aos seus braços: sujo, quase sem roupas. Este, por sua vez, rompia num choro de saudade da mãe, mesmo que não merecesse as lágrimas duma criança inocente, era a mãe...

Os dias correram, voaram apressados. A fisionomia de Tavinho mudara significativamente; entregue aos cuidados da mãe postiça, fora bem alimentado, recebera carinho, atenção. Matriculado numa boa escola, conquistou muitas amizades. – As crianças têm facilidade de relacionamento: são sinceras, ora estapeiam-se, ora brincam como se nada tivesse acontecido. Para elas, os dias correm normais. Normalíssimos.

Chegada à noite, Olavo entrou em casa, como nos dias anteriores, e recebeu a notícia de que Gisele havia morrido. Meses antes, voltou com o filho à cidade natal para que Otaviano pudesse rever a mãe, a qual estava com um carcinoma na mama. Fora um reencontro frio, o filho não reconhecera naquela mulher a mãe:
– Paiê , vamu volta pra casa co’a mamãe, por favor! Num quero fica aqui mais.
– Eu sou sua mãe, Tavo. Aquela lá é a mulher do seu pai, eu sou sua mãe, eu... – desatou a chorar. Que culpa o menino tinha se aquela mulher era-lhe estranha? Era sua mãe? Dois anos se passaram desde que abandonara o filho em São Paulo na casa do pai, sem notícias, sem telefonema algum. E queria exigir direito de mãe? Qual!

Irine era uma mulher dadivosa. Agraciou o enteado com um amor materno, o qual era desconhecido a ambos. Depois, vieram-lhe os filhos: Ana e Pedro. Os filhos mudaram o casamento, as brigas cessaram. Os dias corriam e Olavo fez-se presente mais que pôde a família. Era feliz. Era uma família feliz.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Nos tempos da Bonança

Emanuel era um brasileiro que muitos desconheciam a origem, dos poucos, ou único, dos chamados de bem. Uns diziam que era judeu, outros, um boa praça, uns tais ainda, afirmavam-no ser do Oriente Médio, ou do litoral, pois tinha uma pele bronzeada como os do deserto ou os que residem mesmo no litoral.
Ele tinha um sonho. Qual? Reunir todos os povos pela paz, talvez, construir uma nova nação a ter por capital Jerusalém, realmente, judeu filho da diáspora e de pais sionistas. Desejava, contudo, ter essa nação um único Deus, um único credo, desligada de religião. Por esse sonho, saia a ensinar peripateticamente aqui e acolá. Sim, ensinava: um mundo de justiça, de paz, uma real globalização, respeito ao próximo e às diferenças (étnico-culturais).
Não podiam chamá-lo transeunte, porque fixava residência em todos os lugares pelos quais passava. Não, não fora rico – se vocês pensarem em poder aquisitivo –; rico, rico sim de alma, de sabedoria e de conhecimento, de amor pelo outro. Quando digo que fixava residência, refiro-me ao fato de ele deixar suas marcas, suas palavras em todos os lugares pelos quais passava. Os ouvintes apreciavam deveras suas palavras, porque também ouvia, sabia ouvir.
Nele outro sonho brotava: ser notícia da primeira página do New York Times – ensejado pelo primeiro, não que fosse motivo de lisonja para sua alma; seu desejo – seu sonho –, contudo, era o de que suas palavras fossem transmitidas no jornal e conhecidas pelo mundo para que as vozes louvassem a Deus em uníssono. Como, porém, um brasileiro sem poder (aquisitivo, de influência...) galgaria, ou mesmo, realizaria essa proeza?

Antes de iniciar a narrativa, precisamos esmiuçar as origens de Emanuel, além de sua condição de sionista. Filho da diáspora – como citei no início – da tribo de Judá (o povo judeu tem uma tradição oral e documentária, por isso sabemos a ascendência dele), fruto da união de Benjamim Stein (filho do fundador do sionismo) e de Rebeca Eisen Stein, austríacos de nascimento, erradicaram-se, vieram para o Brasil. – Desconheço, todavia, o motivo, ouvi dizer, que era “de força maior”, não afirmo nada para não me comprometer... – Sei, contudo, que as famosas linhas mal traçadas de Deus trouxeram Emanuel Benjamim Eisen Stein para o Brasil. Muitos o tomavam como sonhador, idealista, vejamos a história... Bem quanto ao sionismo fora um movimento iniciado no final do século XIX por seu avô, o qual tinha como ideal garantir a todo o povo judeu, espalhado pelo mundo, o direito de voltar a sua terra: Jerusalém. Em mil novecentos e quarenta e oito, o sonho fora realizado: passara a existir o Estado de Israel (tudo se iniciou no século VI a. C., mas isso é um ponto para outro conto), direito público o qual garantia a qualquer judeu regressar a terra mãe – chamada lei do regresso. Eis os fatos os quais culminaram para nossa história.
Emanuel, sionista por convicção, desejava mais que garantir aquele direito ao povo judeu, era incisivo quanto aos seus ideais; seu ideal – como de muitos pacifistas: reunir o povo numa única nação sem fronteiras, religião ou poder, a ter como principal mandamento: o amor, no qual entrelemos: o respeito, a igualdade, a justiça, realmente, justa, a paz. Ideais!...
Possuía muitos seguidores desprendidos “do mundo” e de seus males, os quais criam ser ele o Messias encarnado, manso, rei; o adoravam, chamavam-no Homem Deus, filho do Homem. Conheci-o dia desses, sua oratória é fascinante, arrebatadora, motivo pelo qual decidi investigar sua origem e narrar sua história. Não, eu não o tinha como Deus, acreditava ser um homem de Deus, mas não o próprio. Eu o ouvia e retinha dele o bom. Quando o ouvi pela primeira vez, afirmava:
– Todos somos filhos de Deus, co-herdeiros com Cristo no reino. Busquemos a paz, a igualdade, apartemo-nos de tudo que não é lícito, conforme os ensinamentos dos apóstolos do Senhor. Lutemos pelos ideais do Reino de Deus, para implantá-lo aqui no hoje. Irmãos, amar vale à pena! Usemos como arma nosso amor, busquemos a unificação dos povos sem guerra.
Todos o ouviam e abandonavam suas supostas vaidades e seguiam-no, dispostos a implantar esse reino do qual falava. Nas palavras de Emanuel havia tanta força que o movimento espalhou-se. Desde a primeira vez que os jornais noticiaram sua existência, o mundo movia-se conforme suas palavras: “apartemo-nos de tudo que não é lícito. Busquemos a paz.” No início, o povo judeu, ao redor do mundo, não o via como uma figura respeitável, digna de ser ouvida, mas, gradativamente, mudavam seu conceito à medida que ouviam seus ensinamentos.
Era um homem simples. Até mesmo os muçulmanos o aceitaram pacificamente, os hindus, os budistas, todos o ouviam; e ele caiu na graça do povo.

Não precisávamos mais de exército da paz, da ONU, de ter uma nacionalidade. Todos éramos filhos de Deus, tornamo-nos cristianos: uma única nação, um único credo, um único Deus, sem guerra, rei ou chefe de estado, sem opressão; apenas paz, apenas Emanuel guiava o povo, julgava nas raras vezes em que uma injustiça ocorria.

Numa manhã primaveresca ensolarada, céu azulado em que os pássaros gorjeavam, as folhas dançavam ao som do vento, Emanuel realizara seu segundo sonho, postumamente, o de ser capa do New York Times o qual tinha como título:

Emanuel: quem o viu?

Nosso reino paciocrático extinguiu-se com a morte do nosso mentor. Para infelicidade de nossa querida nação, o mestre partiu, morrera numa linda manhã de primavera aos cento e cinquenta anos. Após, oitenta e quatro anos de um reino de paz. Infelizmente, regressaremos a nossa ínfima condição: mortais individualistas.
Será que vivemos um sonho? Um bom sonho tivemos, experimentamos os tempos descritos e narrados pelo nosso preceptor. Anos pelos quais deveríamos lutar para que permanecessem, mas em sua partida levou tudo de bom que ainda havia em nós, deixou o mal ressurgir como a fênix das cinzas.... Continuaremos como somos, como nascemos para viver.
Saudades sentiremos destes tempos de ouro, desta bonança tão aprazível à nossa existência. Morreremos um dia, quem sabe, nesse dia, desfrutaremos eternamente desta santa delícia de nossos dias.
Eis que faço surgir meu protesto: Emanuel: quem o viu? Volte e revolva a paz aos nossos dias.
Frank R. Jones


O tempo da bonança, infelizmente, foi-se... com a morte de Emanuel, o povo entrou em choque e decidiu por plebiscito voltar à antiga rotina injusta anterior aos tempos de ouro, afinal, não haveria mais sentido seguir um morto, porque morto por morto os povos que não eram judaico-cristãos, preferiram seguir cada um o seu.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Efemérides

A mosca que vos fala – não é a mesma mosca a qual costuma cair nas sopas (conforme uma certa música de Raul Seixas), ou fica de zunzunzum nas casas alheias – eu, na verdade, sou uma das que gosta de observar, de vagar por aí. Aprecio muito o mundo da observância e o de narrar fatos os quais presenciei. Não pensem que nasci mosca, pelo contrário, nasci gente: carne, ossos e tudo mais que o ser humano tem direito.
Se tivesse nascido mosca não viveria mais que alguns dias (não sei ao certo quantos, pois nunca me interessei pelo assunto, em pesquisá-lo, bem, até hoje). Um dia desses, um dia qualquer, acordei sentindo-me leve, tão leve que pensei estar a sonhar, como que a flutuar, hoje quando lembro, bem, não sei... Apenas mosqueava dum lado para o outro. Apressada...

Digo-lhes que vida de mosca não é fácil. Sem que esperemos somos expulsas dos lares, dos estabelecimentos comerciais, principalmente, dos que tenham comida. É uma vida triste, confesso, contudo, muito proveitosa para pensar na existência (e mais efêmera que a dos homens), nos problemas os quais assolam o mundo: desigualdade social, injustiça, fome, miséria, falta de amor: próprio e ao próximo.

Oh! Desculpem-me, esqueci-me de dizer-lhes meu nome, é Efemérides. Fui agraciada com esse nome pelas minhas companheiras, as moscas. Pois sou uma das filósofas das Muscidae, e uma de minhas teorias é sobre a efemeridade de nosso espécime, das dificuldades pelas quais passamos. E se as chamo companheiras – para que saibam o motivo – é porque criamos um sindicato, o SMDD: Sindicato das Moscas Domésticas Democráticas. Caso surja a questão do por quê da criação do sindicato, antecipo-me: lutamos por melhores condições de sobrevivência, vivemos pouco e, portanto, precisamos da compreensão das demais espécies de animais e de insetos do mundo para que possamos usufruir mais daquilo que a natureza nos propicia. Além de nos defendermos de acusações absurdas: acusam-nos de carregar em nossas frágeis patas micro-organismos responsáveis por transmitir doenças como a febre tifoide, a cólera e a disenteria e o maior dos ultrajes: contaminar alimentos. Mera especulação... Concordam conosco?
Apoiem nossa causa, desejamos um mundo melhor para todos, em que as classes menores também sejam favorecidas. Deixem de nos caluniar. Como podem falar que nós – as moscas – somos criaturas imundas as quais causam asco nas pessoas? Desculpem-me os porcos, mas todos temos um pouquinho de “porquice”. Vejam as crianças: quantas já vimos a comer a própria caquinha de nariz? Pessoas que roem as unhas, outras que comem sem lavar as mãos? E quanto àqueles que comem do lixo? As pessoas que permitem uma lambidinha de seus cachorros na cara? Temos um ótimo advogado pronto a processar qualquer um que se atreva a nos caluniar; certamente, ganharemos a causa. Na intimidade, tudo é permitido, ou quase...

A vantagem de ser mosca é a de poder bater as asinhas para todos os lados, principalmente, os que são proibidos para alguns: cinemas (refiro-me aos que são para os adultos), bares à noite, boates (aquelas com as luzinhas vermelhas na porta, sabem?), jantares da alta sociedade, CPI. Espiamos tudo e sabemos de muitas coisas que a mídia e a população desconhecem. E não precisamos dar satisfação a ninguém, nossos genitores põem seus ovinhos e vão embora, deixam-nos livres para decidir: a escolha dos caminhos a seguir, das moscas para o acasalamento. Hoje em dia, não devemos fidelidade a nenhum parceiro, só mesmo ao sindicato e aos nossos ideais.
Temos a fama de acertar em tudo, conhecem a expressão na mosca, não? No entanto, não ocorre com frequência, mesmo nossa visão sendo multifocal; eu, Efemérides, sou míope, pois creiam, é verdade. Não só pelo fato de eu ter ainda resquícios da minha humanidade (aliás, foi esse o motivo pelo qual consegui tornar-me a presidente do SMDD), mas também por ser, às vezes, um “defeito de fabricação” presente no meu dia-a-dia e no das minhas companheiras.
No mais temos uma vida simples, é verdade. Vida curta, mas intensa.

Acordei assustada, de repente. Quando, tateei-me, percebi que fora um sonho, não dos piores, mas um sonho, só.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Na calçada: meia vela e Dario

Reescrita do conto de Dalton Trevisan

De sombrinha na mão esquerda, Dario vinha apressado pela rua, virou a esquina, meio cansado, parou, recostou numa parede de uma casa qualquer. Deslizou, assentou na calçada que ainda estava molhada da chuva e pôs seu cigarro sobre uma pedra.
Dois ou três transeuntes começaram a questionar se se sentia bem. Dario, porém, apenas mexia os lábios, sem que nenhuma palavra fosse dita. O homem gordo, de roupa branca, sugeria se ele não estava a ter um ataque epilético.
Dario, no entanto, recaia-se mais sobre a calçada, agora estendido. O cigarro apagou-se. O moço de cavanhaque pediu passagem para que abrissem espaço para o homem respirar. Desafogou- lhe o paletó, o colarinho, a gravata e o cinto. Tiraram-lhe os sapatos, Dario soltou um ruído alto e feio, e bolhas espumavam-lhe boca afora.
Pessoas chegavam e procuravam avistar o acontecido, mas nada viam. A vizinhança conversava, as crianças com o barulho acordaram e de pijama espreitavam nas janelas. O homem gordo narrava os passos de Dario até aquele momento: recostou-se na parede, escorregou por ela e sentou no chão, encostou a sombrinha na parede, ainda a soltar a fumaça do cigarro. Já subtraídos.
Uma velhota de cabelos branquinhos gritava que Dario estava a morrer. Alguns o agarraram e o enfiaram num táxi parado na esquina. Dentro do carro, o taxista perguntava: quem pagaria a corrida? Aí chamaram o SAMU. Devolveram-no a calçada fria e molhada, puseram as costas apoiadas na parede – já não havia mais sapato, nem alfinete da gravata.
Levaram-no até a farmácia, mas o corpo era muito pesado, por isso largaram-no em frente à peixaria. Uma moscaiada pousava na cara dele, mas nem assim se mexia.
O café da esquina abrigava agora todo os curiosos do acontecido, deliciavam-se com os comes e bebes e com a noite. Dario permaneceu do mesmo jeito que o deixaram, já sem o relógio.
Outro sujeito muito do curioso averiguou-lhe os bolsos: papéis e muitos objetos retirados da camisa branca. Assim descobriram: nome, idade, marca de nascimento, e que era de outra cidade.
A viatura da polícia chegou; a multidão de mais de duzentas pessoas (conforme registro policial), ocupava toda rua e mais a calçada. Muitos passavam por cima do corpo, dezessete ao todo.
Um dos guardas chegou próximo ao corpo o qual estava irreconhecível e de bolsos vazios. O único bem que ainda lhe restava era a aliança na mão esquerda, porque ainda vivo não conseguia tirá-la sem que usasse um sabãozinho. Um comodoro preto o levaria.
Uma das bocas presentes retransmitia a notícia: Ele morreu, morreu. O povo todo se ia. O coitado levou duas horas para morrer, ninguém acreditava. Morrer assim? Já se podia ver o presunto.
Um velhinho muito apiedado da situação, retirou-lhe o paletó, afofou e pôs a cabeça do pobre em cima. Colocou as mãos cruzadas sobre a barriga. Os olhos e a boca abertos não puderam ser fechados, não espumava mais. Ainda, nas janelas, alguns curiosos descansavam seus cotovelos sobre as almofadas.
Um pretinho de pés descalços trouxe uma vela, acendeu e pôs ao lado do presunto. Quem olhava tinha a impressão de ele estar morto há anos, sem cor de tanta chuva.
As janelas seguiam a fechar-se: uma a uma. Exatamente após três horas, Dario, ainda estirado no chão da calçada, esperava o comodoro preto. Com a cabeça numa pedra, porque já não havia paletó, nem aliança, nem nada. A vela, pela metade, cansou de esperar e apagou-se com a chuva que voltava a descer.
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