segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Era ninguém

Então também percebi que, num país, uma coisa é o governo, outra coisa é o povo."
Ondjaki


Xuxa, na verdade, era uma passante acolhida pelas ruas da vila dos Tupinambás (o nome nos sugere a ideia de ser uma vila habitada por selvícolas, ou pelo menos, descendentes, contudo, foi-lhe atribuído por um de seus fundadores o qual apreciava a história de Hans Staden e a da tribo que o aprisionou), entregue à misericórdia alheia, à solidão e divagação de seus pensamentos. Os transeuntes eram também personagens passageiros em seus dias. Ninguém sabia ao certo de onde aquela mulher vinha, ou mesmo, qual era o seu verdadeiro nome.
Todos imaginávamos que era apenas uma figura a qual marchava duma esquina à outra a procura d’um canto em que pudesse pernoitar. Outros, ainda, ignoravam sua presença, era ninguém, uma indigente. Mal amada, mal vestida, mal cheirosa, uma louca que falava sozinha. Uns poucos lhe serviam, nos dias frios, um pão com alguma coisa e um copo de leite quente com achocolatado, davam-lhe as roupas velhas sem utilidade.

Dia desses, adentrou no coletivo, atravessou o corredor, em que muitos se afastavam mais que podiam para que ela não os esbarrasse. Quem ousaria sentar ao seu lado? Mulher mal cheirosa, louca... Uma infeliz. Desceu. Todos, enfim, podiam respirar – não um ar puro – ao menos respirar sem que o cheiro lhes causasse náuseas.

Os moradores do bairro eram amigáveis entre si. Eu mesma era uma dessas pessoas amigáveis, dava bom dia ao seu José, boa tarde ao seu João, um olá a dona Maria. No entanto, quando Xuxa se fazia presente, desviávamos o olhar, prendíamos a respiração, evitávamos pensar no assunto, afinal, cada um escolhe sua própria sorte, ou não...
Alguns acham cômodo o viver em família, o relacionar-se entre os iguais. Para Xuxa, o viver era ser ninguém: que pudesse incomodar, amar. Era provável a existência de família: esposo, filhos. Apenas seus pensamentos desconexos possuíam a resposta.

– Ela tem família. Você não sabia?
– Não. Como a senhora sabe?
– Outro dia, estava tão frio que fiquei com um dó da pobre... Então levei pra ela um pão com mortadela, umas bolachas e uma garrafa com leite e achocolatado e um cobertor velho. Aí comecei a conversar com ela, falei de Jesus, de seu amor pelas pessoas. E a partir daí, foi que ela me falou que tinha marido, filhos e que se chamava Maria de Lourdes e um dia saiu de casa...
– Simples assim?
– Pois é... Simples assim! Sabe minha filha – tratava-me sempre com carinho a dona Nair, quando conversávamos – fiquei triste por ela. Viver desse jeito, sem casa pra morar, sem família. Mas ela diz ser feliz assim... eu não entendo. Não consigo viver sem a minha família, sem os meus netos, minhas filhas e genros. Deus tenha misericórdia dela, coitada.
– Amém, amém! – era só que podia dizer. Alguém, ao menos, fazia algo àquela mulher. Quantos albergam pessoas as quais, um dia, foram importantíssimas: políticos, advogados, filósofos. E essas vivem a vagar pelas ruas, sem nome, nem pouso; vivem exiladas de si mesmas. Pior que morrer é sub-viver: sem passado, presente ou futuro. Ter dentro da carne putrefata um coração a bater.

Um comentário:

J.F.AGUIAR disse...

Muitas, Xuxas, que sofrem, as dores
do mundo: fome, abandono,sem nada!
Eu prefiro o perfume da Xuxa que
o discurso mentiroso de nossos políticos sem ética, sem amor...
Ju, eu li... com atenção... nós faz
pensar... "Que país é este"

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