quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Impressões

Dedicado à memória da querida amiga e irmã Léa Denise a qual dorme no Senhor
Num desses inícios de primavera ao cair da tarde, tardezinha fria, antes de me recolher, detive-me ao diálogo entre duas senhoras: uma jovem – entre vinte e cinco e trinta anos – e a outra, a anfitriã – de cinquenta anos. Da anfitriã eu era a hóspede não convidada; não desejada nos cantos da casa, sempre a fiar e a ouvi-la, como nessa tarde:

– Eu os via... via apenas seus pés: pequenos, descalços, imundos... o corpo envolto naqueles cobertores de mendigos, doados pela prefeitura, no frio das noites paulistas. – referia-se aos pequenos marginalizados da beira do Tietê. – eu os via todos os dias no ir e vir do meu trajeto cotidiano: ano após ano, talvez, não os mesmos pés e, infelizmente, acabamos por nos acostumar àquela realidade. No início assistir àquela cena trazia um mal- -estar, sentia o desejo de fazer algo por eles, mudar de alguma forma a realidade, mas os dez anos em que trabalhei no teatro de São Paulo acostumaram-me àquela cena: triste, desumana...
– Sei... assistir a tragédia que perpassa nossa realidade, e somos completamente alheios. Apesar de doer dentro de nós, que há a se fazer?
– Mas me doía muito pensar que não existiria um futuro para eles. Uma vez pobre...
– Morrerá a mingua, mas ainda assim terá esperança... como nós, de poder fazer algo por quem quer que seja. – a vida é sonho como narrou Calderón de la Barca e a busca incessante da realização deste. O homem sonha demais e pouco realiza, principalmente, quando deseja fazer algo pelo outro. Além de não conseguirem viver sozinhos como nós, a aranhas.
– Sim, eles sonham em deixar de ser transparentes, invisíveis para a sociedade, para o resto do mundo. De não morarem mais na favela composta de casas desiguais, sem métrica, nem higiene... de dar um amanhã aos seus filhos.
Eu a olhava, observava e via aquela mulher, Léa, cheia de vida, de esperança para a sua família; e doente, descobrira há dois anos um câncer e a quimioterapia a fazia padecer com esperança de ver ainda seus futuros netos. E eu sabia, ou pelo menos, sentia que ela precisaria de apenas um toque na capa de Jesus para sentir-se viva outra vez, completa. Minhas impressões.
Durante o tempo em que conversavam: Léa – a anfitriã – e Cecília, eu as assistia. Presenciei as lágrimas, os sorrisos, as poesias tão íntimas que uma lia para a outra para que pudessem experimentar uma da outra a opinião, o olhar de consentimento, de aprovação; da beleza de contemplar o simples, a solidão...

Talvez, essa seja uma narração de uma conversa descomprometida, desinteressada, contudo, a amizade, o sentimento o qual as motivava, a estar naquela sala, era sincero, puro e real. A mais jovem tinha a outra como uma espécie de ídolo, porque esta era cantora, professora de música, escrevia poesias: uma artista completa. E Cecília não tinha em sua família o conchego o qual essa casa e essa amizade propiciavam. O ensejo da visita era a doença e um caderninho de poemas cujo desejo era o de oferecer a Léa, e o estar perto.

Registrei num poema (por mais insólito que seja uma aranha escrever) esse encontro:


Impressões

O estar perto imprime o diálogo sem compromisso
impressões se fundem, se calam
sentimentos se traduzem no olhar,
no sorriso, nas lágrimas
personificação dos silêncios.

Noite alta, céu plúmbeo, lua obscurecida
ideias se fundem, se calam
o estar perto, bem perto
traduz a realidade: o desejo
de apenas ali estar

ao lado de quem se ama
e de quem quer estar perto,
bem perto. A dividir: sonhos,
ideais, medos, desejo de ser,
de fazer, de dividir, de compartilhar.

Talvez, imprima bem a realidade de uma boa e verdadeira amizade. Porque a jovem Cecília amava aquela mulher, aquela amiga de pouca data e muita conversa. E seu desejo era o de ver a saúde da outra restabelecida, como ela disse ao final do encontro:

– O meu desejo, e eu sinto isso no fundo do meu coração, é vê-la curada, vencedora, porque a amo; e sei que ainda há de lembrar-se desses momentos de tribulação com alegria por tê-los vencido, há de ver seus netos a correr pela casa, ainda os ninará com sua doce e linda voz, eu creio!
– Deus sempre providencia alguém para ficar comigo, nunca fico sozinha, obrigada. – E o encontro encerrou com um abraço molhado das lágrimas, sincero, forte e feliz, pois o estar perto, bem perto de quem se ama basta.

Um comentário:

J.F.AGUIAR disse...

JU, passei por aqui eu li seu texto
lembranças da amiga...você sabe narrar os sentimentos, Ju lembranças...saudades!!!

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